O valor universal da água, no que diz respeito à sobrevivência da Humanidade e à importância que tem por exemplo para as questões energéticas e da regeneração do corpo, obriga a que cada um de nós deva tomar esse recurso como finito e o preserve em todas as formas de utilização. As cidades que o têm como recurso económico e identitário devem saber potenciá-lo como desenvolvimento, contribuindo assim para o desígnio universal. Este é um espaço de estas e de outras águas. De todas as águas.

2010-03-23

O Poder da Água: Termas e Assistência

Imagem: "Banho dos Homens" no Hospital Termal das Caldas da Rainha, gravura de Henry l'Évêque, século XIX, Biblioteca Nacional de Portugal

A história das termas portuguesas é também a história da assistência aos que têm procurado, nas águas, a terapia das suas doenças. Para eles, construíram-se estruturas de apoio ao ritual do banho, a diferentes escalas e tipologias, de traço popular ou erudito. Uma viagem através dos tempos percorre séculos de pensamento e um panorama alargado dos traços desenhados e construídos, como testemunhos de um património material e imaterial, em que se cruzam também aspectos de natureza assistencial e de lazer. Em muitas geografias do país, onde se construíram inúmeras estruturas arquitectónicas, as populações inicialmente tomaram conhecimento das propriedades terapêuticas das águas emergentes, experimentando, transmitindo e difundindo os efeitos que as mesmas lhes faziam, ou pelo menos o seu poder de transformar as circunstâncias, os sentidos e as sensações, enfim, o sofrimento em descanso. O conhecimento de sítios balneares pode atestar-se pelo documento de 1223 (Compromisso da Gafaria de Santarém) que determina que “se o gafo ou gafa quiser hir em Romaria ou aas calldas…” dar-se-lhe-ia o equivalente a 12 dias de ração para ali (nas Caldas de Óbidos) permanecer em tratamento. As primeiras organizações populares ou clericais que asseguravam a prestação de amparo aos doentes e vigilância e manutenção das estruturas balneares antecedem o período pleno de consolidação e estruturação dum modelo de funcionamento do Hospital Termal, consignado no Compromisso de 1512. Regula-se o acompanhamento e enquadramento institucional, o organograma administrativo, a determinação das tarefas dos oficiais do Hospital, bem como a gratuitidade dos banhos a pobres e indigentes, graças ao empenho da rainha D. Leonor em fundar, em 1485, um hospital notável, pela sua função assistencial e pela capacidade de receber doentes de todo o país, tratando-os e retemperando-os na dignidade humana e espiritual. Através dos séculos, o papel das águas terapêuticas foi simultaneamente de pretexto para estadas dos mais abastados, mas também assistencial aos mais desfavorecidos. Para este benefício, só em 1855, por decreto régio, se tornaria obrigatória a apresentação de um atestado de indigente, passado pelo pároco da residência do doente, para que este obtivesse direito à assistência médica gratuita. Esta regulação acabou por ser aplicada aos restantes balneários termais existentes no território português, marcando-se uma diferença entre pobre e indigente, sendo que apenas a este último lhe era dado esse direito, juntamente com os militares e os membros das ordens religiosas. Durante o século XIX, são solicitados, nas Cortes Constituintes, inúmeros pedidos de licença por parte dos deputados para se deslocarem a banhos, o que também lhes permitiu tomar conhecimento do estado das nascentes e avaliar o estado dos locais. Tal, fez com que se estabelecesse um conjunto de medidas para melhorar o aproveitamento terapêutico das águas minerais. Apenas em 1892, uma primeira legislação dá um enquadramento legal à concessão para a exploração das águas “mineromedicinais” portuguesas. Em particular, esta legislação manteria a gratuitidade dos banhos para os indigentes. E já em 1919 o mesmo benefício é consignado aos funcionários sazonais das termas. Contudo, a lei de 1928 seria ambígua nesse aspecto. Neste entretanto, as termas portuguesas consolidavam o seu espaço de ócio destinado tanto aos que procuravam melhorar os seus padecimentos como à higiene e ao lazer das classes abastadas. As termas, para além de prestadoras de tratamentos ou cuidados de saúde do corpo, consolidavam-se como estâncias de recreio e divertimento. Com o desenvolvimento dos fármacos, discutia-se, em meados do século, sobre a necessidade de incrementar o termalismo social, aludindo-se ao facto de a inexistência de uma Medicina Social nas termas portuguesas, à excepção do Hospital Termal das Caldas da Rainha, se dever à débil frequência termal, mas também a deficientes infra-estruturas e equipamentos directa e indirectamente relacionados com a terapia das águas. Por despacho de 6 de Agosto de 1959, foi regulada a assistência termal a sócios das Caixas de Previdência, a pobres e indigentes. Porém, pouco foi feito no sentido de consolidar a difusão dos hábitos termais, em camadas da população mais desfavorecidas, por via dos sistemas institucionais. A partir dos anos 70, a assistência termal encontrava-se reduzida a algumas situações pontuais: no Hospital Termal das Caldas da Rainha, já em regime de funcionamento permanentemente; no Palace Hotel, de S. Pedro do Sul, adquirido pelo Ministério das Corporações, com o objectivo de permitir a realização de colónias de férias, possibilitando, assim, que os seus beneficiários pudessem, mais facilmente, realizar tratamentos termais e prevenir a sua saúde; na aquisição, pelo mesmo Ministério, das estâncias termais de Manteigas e Entre-os-Rios. Enfatizava-se, cada vez mais, as qualidades reabilitadoras e preventivas (para além das curativas) das águas termais. Foram lançados fortes apelos para que a Caixa de Previdência se associasse ao movimento assistencial, que se pretendia verdadeiramente generalizado para o crescimento da frequência termal no nosso país. Após a revolução de 1974, a assistência generalizou-se aos Serviços Médico-Sociais, à Assistência na Doença aos Servidores Civis do Estado (ADSE) e à Assistência na Doença do Ministério do Exército, contribuindo para a crescente utilização das termas portuguesas. Porém, em 1982, a comparticipação nas deslocações e estada foi retirada da Segurança Social, o que veio diminuir de novo o número de procura. Desde 1995 que o Programa Saúde e Termalismo Sénior, do INATEL, passou a colocar ao dispor dos utentes actividades de lazer e bem-estar, mediante a prestação de terapias termais aos participantes que tenham sido objecto da sua prescrição médica, contribuindo assim para um crescimento da procura termal. Este Programa Social tem tentado, além de contribuir para a promoção da qualidade de vida, conciliar a deslocação às estâncias termais de pessoas, acima dos 65 anos com necessidade de tratamentos e possibilitar o contacto com atractivos turístico-culturais, procurando associar deste modo o tratamento e os tempos livres. No virar do século, melhorias sensíveis do poder económico dos cidadãos e o incremento de algumas reformas político-sociais de fundo facilitaram o acesso aos cuidados de saúde, também nas termas, tendo sido igualmente necessário que o número crescente de utilizadores tivesse sugerido aos concessionários e agentes locais a urgência de uma mudança de mentalidades e, fundamentalmente, novos investimentos nos balneários, alojamentos e zonas de lazer. O empirismo deu lugar às pesquisas científicas na área da hidrologia médica e a uma maior certificação; e os edifícios revelam-se mais surpreendentes e humanizados, sendo um desafio acrescido para o desenho das termas portuguesas.

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